28.8.10

Fragmento de memória


Minha cabeça ainda doía, mas isso não era minha principal preocupação. Não naquele momento. Como por teimosia, minhas pálpebras insistiam em se abrir; queriam procurar, curiosas, o que eu mesmo não tinha coragem de olhar. A culpa era do medo. Medo de estar delirando, medo de não encontrar o rosto quase perfeito por perto, de ter sido apenas um equivocado sonho.

Tentei, mas não consegui manter-me deitado. Sentei na cama, depressa, ofegante. Foi então que senti, de novo, e me tranqüilizei; meus temores cessaram, não tinha mais razão para hesitar. Aquele toque frio, mas intenso, cheio de vida. Foi mais do que suficiente para me acalmar. Meu coração pulsava forte, porém aliviado; cada terminação do meu corpo, mesmo que inconsciente, estava eufórica por tê-la de volta.

Ela estivera comigo o tempo todo, esperando seu frágil e irresponsável namorado dar algum sinal de vida. Louise sentou-se na cama, a minha frente, suas mãos tocaram meu rosto, devagar; primeiro, tocou minha têmpora, lentamente contornou meus olhos por baixo com o polegar. Manteve seu olhar preso ao meu, e de forma quase hipnótica, mantive meus olhos presos também. Seus olhos fecharam-se.

Aproximou seu rosto do meu, roçando suavemente seu nariz em minha bochecha, continuamente, até que encontrou o meu. Fechei meus olhos. E enfim, nossos lábios se tocaram, novamente, de uma forma tão especial quanto foi a primeira vez. Estávamos fora do tempo e do espaço, perdidos em nós mesmos e sem o desejo que nos encontrassem. Finalmente, minha tranquilidade voltara. Éramos apenas eu, Louise e nosso beijo - e definitivamente, não havia nada que eu pudesse querer mais.

20.8.10

Clara


Sonhava. Invejava.
No fundo mesmo, queria a pieguice que via naquela menina
Que queria refletir ao espelho quando seus olhos focalizassem-no.
Gostava da tradição, mas não sabia segui-la. Tinha medo.
Medo de pessoas, de amor, de dor
De sentir, de qualquer forma. Mas queria.
Procurava não chamar atenção para si, preferia estar nos bastidores
Da vida. Contra-regra, ela criava situações para os outros.
E esperava que um dia sua situação se criasse
Sozinha.
Tinha um consolo imaginário, um apoio, uma distração. Algo que fazia sua mente brincar. Sorria quando via aquele casal de mãos dadas ou um beijo estalado seguido de uma gargalhada infantil. Gargalhava também, porém sozinha e logo depois
Chorava.
Não queria um buquê, muito menos um jardim. Queria, sim as
Sementes.
Desejava construir seu sonho, acompanhada. Semear, certa de que as flores viriam.
Perdida dentro de si mesma, apenas queria uma mão amiga ou
Amável para guiá-la para fora de si, para seu palco.
Queria deixar-se brilhar, fazer encantar.
Não pedia muito em troca. Não era necessário uma sessão de infindáveis aplausos. Queria sim um bater de palmas, duas apenas,
Acompanhadas de um sorriso sincero. Isso era suficiente para que conseguisse
Sorrir, enfim.

Imagem: FightingFailure, Deviant Art.

12.8.10

Fim?


Terminou o namoro. No dia seguinte acordou cedo, olhou o que refletia o espelho e chorou. Suas lágrimas não possuíam traço de desespero algum. Sentia-se feita de argila, e deixou que as lágrimas a amolecessem e remodelassem a carcaça em que se sentia envolta. Não queria mais refletir aquilo, não queria ser assim. Não mais. Teria que fazer algo a respeito. Não deixaria dominar-se novamente.

Suas mãos avermelhadas, manchadas. A tesoura afiada na mão esquerda. O chão também estava respingado, assim como seu antebraço. Não se importou; as conseqüências já eram permanentes. Sorria, satisfeita. A tesoura já executara o ofício que lhe fora oferecido. Encontrava-se quente e presa à mão da sorridente nova mulher que o mundo ainda não conhecia.

Cachos castanhos espalhados pelo chão do banheiro branco, com menos cachos castanhos em sua cabeça, menos preocupações. Ruiva, sem medo, agora com uma nova imagem, um rosto que reflete uma personalidade reluzente. Mudara e permanentemente.

Sentia-se leve, borboleta. Feliz por dentro, livre por fora. Guiar-se-ia pelo caminho dos ventos, como simples andarilha do ar, sem medo ou expectativa alguma. Queria apenas ser – e já sabia como. Estava em seu pleno controle. Tinha a si mesma, à sua liberdade – e para o momento, tudo isso era mais do que suficiente.